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segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

As Crianças , Os Amigos , Os 100 de Dunlop e a Lua Cheia


            
            Como já foi dito por aqui atualmente quase não mais observo da Stonehenge dos Pobres (a.k.a. o observatório mais urbano do mundo). A astronomia observacional sob céus urbanos (Bortle 8 ou 9) é possível e até mesmo indicada para o iniciante. Porém depois de algum tempo os alvos se tornam escassos ou meras assombrações. Desta forma me vejo obrigado a procurar por locais mais escuros. Durante muito tempo o meu posto avançado foi Búzios. Mas mesmo este se tornou muito claro e a arquitetura do local se tonou inadequada. E assim deixei as terras de José Eustáquio rumo a Serra de Friburgo. Debaixo de céus rurais (Bortle 3 ou 4) sou mais feliz. E agora comemoro as Aporemas (um misto de festa pagã, lenda e mentira...)  nos entornos de Lumiar.
                Desta vez a festa não vai acontecer na lua nova mais próxima aos solstícios (ou equinócios) como manda o figurino. Haverá um eclipse lunar e como obriga a geometria estes só ocorrem na lua cheia. E seria um absurdo não o registrar. Parto rumo a serra com a lua já bem crescente.
                Entre os vários projetos observacionais que realizo decidi que devo me concentrar. Com o projeto Lacaille concluído e publicado me decidi por centrar esforços no próximo livro. O Sul Profundo: O Catalogo Dunlop. 
                Quando se fala no céu austral três nomes devem ser levados em conta. Lacaille, Dunlop e John Herschel. Com todo o Catalogo Lacaille registrado e devidamente apresentado o próximo passo lógico é atacar Dunlop. James Dunlop.
                Dunlop é um renegado. Certamente o maior amador de todos os tempos. Sem nenhum suporte ou apoio este “descobriu” mais de 600 nebulosas ao sul do tropico de Capricórnio. Ainda que nem todas tenham sido confirmadas realizou um trabalho magistral e pouco conhecido. Especialmente aqui pela Pindorama. Com um telescópio construído por ele mesmo e sem nenhum apoio ele explorou o céu profundo a partir de Paramatta, na Austrália.
                Meu objetivo é a observar e registrar fotograficamente (nesta ordem) os 100 DSO´s mais interessantes de seu levantamento. Os “100 de Dunlop”. É uma lista organizada por Glen Cozens. Um dos maiores especialistas na história dos céus austrais. Quiçá este se torne os “200 de Dunlop”.
                Desta forma parto para Lumiar com um plano (que como sempre não será seguido e é para lá de ambicioso) observacional. Segundo este devo observar 25 objetos Dunlop por estação. A inspiração é o Guia para os “400 de Herschel” de O´Meara. Neste ele traça um plano para realizara a façanha ao longo de um ano. Acho que vai demorar mais para registrar os 100. No final da expedição visitei os seguintes objetos de Dunlop: IC 2488, Ngc 3201 , Ngc 3114 , Ngc 2808, Ngc 4349 e só... Faltam 96. Na verdade já fotografei e visitei todo o Catalogo Lacaille. Que está contido dentro dos “100 de Dunlop”. Mas é questão de honra revisitar e fotografar tudo de novo nesta nova empreitada. Desta forma são novidade apenas 2808, 3114 (este já apresentado aqui no Nuncius Australis) , 3201 e 4349.

                Depois de muito tempo sem observar partimos novamente eu, meu filho e Newton (um telescópio refletor de 150 mm f8) para Lumiar. Eu vou visitar velhos amigos e céus mais escuros. Meu filho vai encontrar os “amigos Capoeira”. É assim que ele chama os filhos de meu antigo professor de geomorfologia e um dos velhos amigos que vou encontrar.




                Como sempre digo os maiores inimigos do homem e da astronomia são ele mesmo, os amigos e a cachaça. Crianças também não ajudam muito. Desta forma as duas primeiras noites não são exatamente astronômicas. Muitos amigos e muita cachaça. Mas na segunda noite faço um exercício fundamental. Observar o céu a olho nu. Depois que a lua já tinha se posto e em um vale esquecido om Boa esperança passeio pelos céus. Saindo do Cruzeiro e seguindo até Orion percebo quase todo o catalogo Lacaille a olho nu. São velhos amigos também. E sabendo onde buscar todos são alvos fáceis. Durante muito tempo impliquei com O´Meara, que fala em seus livros de diversos DSO´s que são visíveis e mesmo óbvios a olho nu, achava conversa fiada. Não é. Estes se apresentam, mas de um jeito diferente. São nebulosas, estrelas suspeitas ou “algo suspeito”. Mas uma vez se sabendo o que são e onde estão fica mais fácil. O homem é o exercício que faz.
                Finalmente abandono a casa do velho mestre e vou para meu refúgio na Pedra Riscada. Eu e as crianças. Lá monto e telescópio e me preparo para “trabalhar. O céu na região é Bortle 3. Uns poucos domos de luz a sudeste (Sana) e a nordeste (Lumiar). Nada grande. O horizonte sul é bem aberto e a paisagem deslumbrante. Em noites sem lua o N.E.L.M. (uma sigla e um anglicismo. Significa “Naked Eye Limit Magnitude”. Magnitude Limite a Olho Nu.) atinge facilmente 6a magnitude. Em noites sem lua. Não é o caso. 
                Acreditando na sorte faço um alinhamento polar de ouvido. Não funciona. Finalmente decido por um método mais científico e este funciona de maneira impecável. Os objetos que busco sempre aparecem no campo de minha ocular 26 mm. Utilizei Canopus e Betelgeuse para realizar o alinhamento do Synscan de Mlle. Herschel (uma cabeça equatorial HEQ 5).
                De uns tempos para cá tenho percebido que a astrofotografia pode ser um perigo. Me prometi que sempre tentarei ver o que procuro antes de fotografar. Outro dia, “conversando” no Facebook, perguntei a um amigo qual era sua impressão de um determinado DSO visualmente. Ele me contou que não tinha olhado sequer na ocular. Cada um com seu cada um. Mas eu acredito que a fotografia é uma importante ferramenta. Mas enquanto astrônomo a observação visual é fundamental. A astrofotografia não pode ser um fim em si mesma. O registro visual dos céus é fundamental. Mesmo que não seja possível se extrair tanto detalhe é importante se saber o que se vê até mesmo para saber que detalhe se deve buscar extrair. Sob a pena de seu registro fotográfico ser algo de caráter artístico e não astronômico. Fotos com “false color” e quase pinturas acabam por afastar muitos da astronomia. Quando se fala em astrofotografia o prefixo deve ser mais importante que o sufixo. Com o barateamento e a facilidade do equipamento para astrofotografia a preguiça pode se abater e técnicas como o uso de “averted vision” e conhecimentos básicos de ótica podem acabar sendo relegados. O conhecimento da combinação correta de telescópio, ocular e seeing podem ser a diferença entre ver e não ver um determinado DSO. É mais fácil simplesmente acoplar a câmera e depois de uma dezena de exposições obter uma confissão.  Outro risco é o surgimento de astrônomos sem nenhum conhecimento real. Belas fotos são legais mais conhecer evolução estelar é obrigatório...
                Inicio a noite me lembrando que a lua é cruel. Tudo lavado e alvos óbvios quase difíceis. Já disse que o inicio da noite foi desastrado e com um pobre alinhamento polar só observei os DSO´s mais claros. E  fotos eram só rabiscos. Mesmo utilizando comprimentos focais cada vez mais curtos.
                As 11:32 Canopus cruzou o meridiano e eu alinhei o Newton. A lua quase se pondo e finalmente ataquei Dunlop.


                Comecei a noite revisitando IC 2488. Um dos 100 de Dunlop e membro de Lacaille também. Composto de pequenas estrelas é bastante atacado pelo “bafo lunar”. Refiz o registro fotográfico deste que nos tempos do antigo livro foi muito apressado. Muito bacana. Um aberto delicado. E que continua merecendo um tratamento melhor...


                Sigo para uma novidade. Nunca tinha visitado. Ngc 3021. Um globular frouxo e obrigatório. O melhor da temporada. Fico feliz em ter percebido visualmente o “V” ou cunha que se apresenta tão facilmente em sua foto. Visualmente este é desafiador. Me recorda em algo o “Globular Fantasma” em Libra, Ngc 5867. Mas de formato mais irregular, e provavelmente devido a presença da lua, ainda mais tênue.

                Ainda seguindo o plano Dunlop Ngc 2808. Um Globular clássico. Pequeno e denso.

O aglomerado está no lado direito da foto.

                Decido acertar as contas com um aberto no Cruzeiro que sempre me traiu. Ngc 4349. Um dos “100 de Dunlop”. Um aberto bem discreto e ao lado de um asterismo que pode acabar roubando a cena e enganando o caçador. É ,com certeza,  um  alvo do velho projeto “Tudo que Existe”. Nenhum guia observacional clássico ou moderno o aborda detalhadamente. Não resolvi o aglomerado. Em noite mais aprazível talvez consiga . Mas com a lua presente é apenas um esfuminho bem discreto. Nestes momentos a fotografia realmente se apresenta como ferramenta fundamental. Sem esta seria difícil dizer a real natureza desta “nébula”.
                Voltando no tempo e ainda no inicio da noite fiz algumas fotos da lua. Com o eclipse vindo por aí é bacana registrar o andamento das coisas...

                De volta ao céu profundo e ignorando o fato que a lua quase cheia faz estragos mesmo depois de se pôr eu visito o Sombreiro (M 104). A foto fica péssima, mas esta é uma galáxia fácil. É sempre legal visitar galáxias...No visual ela é bem melhor do que se imagina. Sem vergonha.
                Depois tento coisas mais difíceis, M 95 e 96. E algo em Virgem. Fracasso total. O céu apresenta bastante umidade e em noite de lua já quase cheia não consigo perceber as galáxias que abundam pela região.
                   antes que me esqueça fiz uma muito rapida captura de Ngc 3114. ou pelo menos parte dele. 
Single frame de 3114. 

                Já vai 3:00 da manhã e devo dormir. As crianças desmaiadas no quarto e sei que não irão até muito tarde na manhã seguinte. Para piorar o velho professor passou pelo posto avançado e está com um machucado feio na perna. Prometi ver a situação na manhã seguinte e conforme a necessidade o levar até o posto de saúde. E aqui na roça isto tem que ser cedo. Ou não há médico. Sistema de saúde de M...
                A tarde cai uma daquelas tempestades típicas de verão. E a noite há muita neblina. Apresento a lua para alguns turistas e é só o que consigo. Sempre faz sucesso . Especialmente quando você acopla a camera com uma Barlow e dá um passeio por algumas das estruturas mais manjadas.  Uma rápida olhada em M 41 me mostra que seria perda de tempo insistir na missão. desmonto tudo . Mlle. Herschel não está gostando da umidade e nem a Canon. 




                Às vésperas da lua cheia volto para Boa Esperança. É novamente tempo de amigos e cerveja. Na manhã seguinte vou seguir para Friburgo onde irei encontrar a cara-metade e minha filha e torcer para que a noite do eclipse se encontre aberta enquanto comemoramos os 96 anos da bisavó das crianças. 
                Mas isto é outra história.

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