Fazia
algum tempo que não observava. Murphy e a falta de tempo pareciam conspirar
para tal. Em abril e maio, felizmente, tive algum trabalho. Junho costuma ser
mais parado mesmo devido ao festival de Cannes. As agencias e produtoras (pelo
menos as que me contratam) costumam virar os olhos para o velho mundo e nós,
herdeiros dos Tamoios e Tupinambás, ficamos à mingua. É claro que o tempo nublou na lua nova...
Finalmente
chegou o quarto crescente, já no fim do mês, e apesar da condição aquém do
ideal me dignei a cumprir uma tarefa que vinha me agoniando um pouco. Terminar
de observar e fotografar todos os Globulares Messier de Ophiucus. Assim teria
no meu “quíver” todos os Messier da tríplice fronteira (Sagitário, Ophiucus e
Escorpião) e uma significativa amostra de globulares dos céus.
Com
isto em mente e com a cara metade viajando o projeto tem que ser corrido. Só me
faltavam dois destes anciões do universo para concluir minha nada hercúlea
tarefa. M 14 e M 19.
Desta
forma me organizo para que na Sexta feira, 30 de junho de 2017 (exatamente no
Quarto crescente. 50% disco lunar iluminado) eu consiga abater as vítimas.
Claro
que não foi tudo tão fácil assim.
As
coisas começaram correndo (quase) conforme o script. As crianças não tiveram
aula (mais uma paralização dos professores). A babá/governanta/secretária chega
só as 11:30. Desta forma por volta de 12:00 eu estou trocando o focalizador do
Newton (meu refletor 150mm f8). Na verdade, estou reinstalando o original. Este
se empenou há mais de um ano atrás e finalmente mandei ele ao torneiro para ser
concertado. Vinha operando com um focalizador muito vagabundo há muito tempo...
Ainda longe de ser o ideal a mudança já
melhorou muito as coisas.
Depois
disto me digno a colimar o telescópio com alguma seriedade. Gasto meu tempo.
Localizo meu kit de chaves allen e começo ajustando o secundário de forma bem
mais precisa do que de costume. Depois gasto o tempo no primário. Mesmo sem
um colimador consigo um resultado bem satisfatório. O melhor em muito tempo...
Vou
organizando tudo e deixando todo o equipamento reunido na sala. Hoje a
brincadeira será na sobreloja da “Stonehenge dos pobres”. No telhado de meu
prédio. Não visitava o local há muito tempo. Mas com os meus sonhos de ir para Búzios
destroçados por meu irmão que esta super ocupado e pelo caseiro que vai entrar
na faca semana que vem era minha única opção. Sempre ensaio que vou visitar meu
tio que possui uma casa com um belo jardim e um horizonte sul bem livre. Mas
com os alvos que tenho em mente nascendo a leste acho que a Rocinha será uma
fonte de poluição luminosa assassina para os pálidos globulares. Fora o fato de
meu carro se encontrar na oficina.
Finalmente
uma grave crise. Ao sentar para almoçar me lembro que ainda não peguei tudo que
preciso... E aí sumiu a fonte de Mlle. Herschel (Uma cabeça equatorial HEQ 5).
Depois de abandonar o prato na mesa, muitas blasfêmias e uma desesperada
excursão ao centro da cidade em busca de uma substituta minha
babá/governanta/secretária me manda uma mensagem segundos antes de eu comprar
uma nova fonte. Localizou a fonte original entranhada entre o caos que impera
nas roupas de minha amada filhota aborrescente. Pena que esta já se encontra de
castigo devido a mal comportamento. Seria redundante castiga-la de novo...
Finalmente
me lembro de que tenho que pagar a conta de meu celular. Uma rápida corrida ao
banco e posso começar a trasladar o equipamento para a “laje”. Na verdade na
sobreloja não existe uma Laje de fato. É bem pior que isto.... Vejam a foto que abre este post e imaginem a mão de obra que é se equilibrar sobre as telhas e não
quebrar nenhuma.
A
derrota está planejada e é audaciosa. Incrivelmente e fugindo a tradição tudo
acontece como um relógio...
Utilizo
a passagem de Acrux pelo meridiano para afinar o alinhamento polar. Mas apesar
de não observar da Stonehenge dos Pobres há tempos aqui eu faço o alinhamento
polar até “de ouvido”. Assim as 17:44
tenho meu alinhamento polar feito. De dia ainda. É incrível como Acrux é
visível de dia...
Agora
é esperar alguns minutos para ter certeza que vou obter estrelas “boas” para o
alinhamento do “go-to”. Já aprendi que dependendo de onde estarão os DSO´s que
você pretende capturar é bom escolher estrelas guias para o seu Synscan (o
Go-to de Mlle. Herschel) que “cerquem” a região. Utilizo quase sempre a opção
de utilizar duas estrelas para isto. A opção três estrelas demanda os
horizontes livres e isto é virtualmente impossível da maioria do s locais. Nesta noite foram Antares a Arcturus as
estrelas escolhidas. Se revelaram uma sábia decisão. Mlle. Herschel se
comportou de forma brilhante durante esta curta noite. Todos os objetos
buscados caíram dentro do campo de visão do sensor de minha câmera. Normalmente
trabalho ao contrário. Primeiro localizo os objetos visualmente e depois os
fotografo. Mas com o Synscan quase cravando tudo que pedia preferi fazer assim
e garantir que o foco não tivesse que ser refeito para cada objeto. Mesmo com o
“novo” focalizador cravar o foco é uma ciência inexata... Para que isto ocorra
perfeitamente o ideal é utilizar uma estrela brilhante o suficiente para ser
percebida no LCD. Mas na maioria das vezes esta estrela não existe no campo a
ser fotografado e você precisa utilizar uma estrela mais distante marcar o
ponto de foco no tubo do focalizador e depois pedir para que sua cabeça se
dirija ao objeto desejado. Como nem sempre ela chega no ponto certo você tem
que tirar ela do foco e focar para observação visual. Os DSO´s não chegavam
exatamente centralizados mas chegavam sempre no canto inferior direito do
sensor. Daí um mais uma ou duas fotos para ajustar e se resolvia tudo...
Antares 3200 ASA 30 Seg. |
Para
marcar o foco utilizei Antares. Com uma exposição de 30 segundos e 3200 ASA percebo
que que o alinhamento polar se não está perfeito está muito bom. Vai segurar 30
segundos ”na boa”. Mesmo porque o claro fundo de céu do Rio de Janeiro (ainda
mais com a lua bem presente) não permitiria mais que isto mesmo... E de
qualquer forma sem um sistema de acompanhamento e com 1200 mm de distância
focal seria muita sorte aproveitar ao menos 25% das fotos com exposições mais
longas que isto. No momento não posso “tourar”
US$ 300,00 no brinquedo. As coisas estão bem difíceis.
Como um teste
fui visitar M4. Esta ao lado da estrela e é um alvo visual fácil. Mesmo
distante ainda do twilight astronômico e com Copacabana já toda acesa atrás dos
Morros do Cantagalo e dos Cabritos percebo o globular visualmente me utilizando
de atenção e visão periférica. Faço
algumas exposições deste para checar o foco novamente e o ruído. Há bastante
nebulosidade no ar, ainda está claro e a poluição luminosa se faz presente.
Isto também se traduz em muito ruído. M 4 eu fotografo com apenas 20 segundos de exposição. M 4 apresenta esta espinha dorsal em seu centro que o torna um dos gobulares mais charmosos do céu.
M4 -16X20 seg. +8 darks 2X Drizzle no DSS. Nenhum tratamento adicional. |
Sabendo
que ainda é muito cedo arrisco escolher M 19 no comando de mão de Mlle.
Herschel. Tiro uma foto e lá está o globular. No canto direito e abaixo do
visor LCD. Um pequeno ajuste e poucas fotos depois percebo que existe muito
ruído. Especialmente nos arquivos em RAW. Minha câmera permite capturar
simultaneamente uma imagem em RAW e uma em Jpeg . Decido tentar
baixar a ASA para 1600 e aumentar a exposição para 30 segundos. Melhora
bastante.
M 19 -28X30 Seg.+16 Darks 2X Drizzle no DSS. Fitswork. |
Normalmente
(sou um preguiçoso) só faço as capturas em Jpeg. Mesmo sabendo que vou
conseguir extrair mais detalhes com o formato cru. Mas como atualizei meu Deep
sky Stacker (3.4.4) e posso agora trabalhar em RAW sem ter que passar todas as
fotos no Adobe DNG para trabalhar acho que daqui para frente passarei a
utilizar as imagens sem compressão. Outra vantagem (esta inimaginável)) é que o
processo de stacking se dá muito mais rapidamente utilizando-se arquivos em RAW
em vez de Jpeg. Enquanto o Deep Sky Stacker (com o mesmo valor de threshold) detecta
em torno de 17 estrelas em cada uma das fotos em RAW utilizando-se os arquivos
gerados em Jpeg o programa contabiliza mais de 100. Desta forma a “leitura” dos
dados para o processo de empilhamento se arrasta por mais de 30 minutos contra
3 ou 4 em RAW. Chego à conclusão que o DSS confunde estrelas com artefatos....
Quando chegam os resultados (especialmente de M 14) é definitivo. Nunca mais
deixarei de fazer os registros em RAW. Ainda que para publicar as fotos seja
inevitável a conversão.... Foi um massacre. Até mesmo o número de fotos aceitas
pelo DSS foi muito maior com os arquivos em RAW.
Tenho
estado menos maníaco e alterado velhos hábitos. Atualizei o Câmera Raw do Photoshop,
larguei o Chrome para utilizar o Opera e assim vai. Aliás tenho que fazer um elogio
a este browser. Seu VPN “built in” é uma mão na roda e apesar de evitar o
Pirate Bay tenho me conformado com os tempos de crise e utilizado praticas
pouco ortodoxas para botar meu cinema em dia. Fora o fato que a qualidade da
imagem na Netflix é muito ruim...
M14-35X30seg+ 16 darks Asa 1600 2X Drizzle DSS -Fitswork |
Depois
disto ainda falta M 14. Este bem mais tênue e difícil que M 19. Ainda baixo no
horizonte (são 19:13 horas ainda) arrisco enviar Mlle. Herschel em seu encalço.
E lá está ele. Discreto mesmo para o CMOS (tipo de sensor digital que equipa
minha câmera). Faço 38 fotos deste. Não
creio que vá se resolver nem no empilhamento. Muito baixo no horizonte e ainda
no bafo de luz da cidade. Percebo também uma leve névoa indo até alto no
horizonte.
Depois
de tirar todas as fotos retiro minha câmera do telescópio e parto para inspeção
visual destes dois novos amigos. M 14 é um espirito com a ocular de 25 mm. Uma
daquelas coisas que recordam as reflexões de Spinoza sobre o existir. Mas está
lá. Com muita visão periférica e hiperventilação. Depois M 19. Este bem mais
material que seu colega. Com a 25mm ele está no limiar da resolução. Desconfio
de algumas estrelas “flicando” na ocular com visão periférica e percebo uma
modesta condensação com visão direta.
Fico feliz com o resultado da rápida missão na
Sobreloja. As 17:44 minutos estava com meu alinhamento polar pronto. As 18:21
tirei a foto de Antares. Cincos mais tarde estou fotografando M 4. As 18:42
tenho minha primeira foto de M 19 e as 19:46 a última de M 14. Pouco depois das
20:00 estou com todo o equipamento dentro de casa e posso ar atenção ao meu
pequeno. Afinal já está há uma semana sem ver a mãe. E saindo assim cedo do
telhado nem sou acusado de ser o tarado do Bloco B. Mas confesso que gostaria
de ter feito um ataque também aos abertos entre Centaurus e Lupus. Não chega a
ser preocupante. Eles devem permanecer por ali durante bastante tempo ainda...
É
incrível que se consegue fazer hoje em dia. Depois de algum processamento tenho
estrelas resolvidas em M 14. Não achei que isto aconteceria. Acredito que se deu
devido não só a uma captura de imagens um pouco mais caprichada (ainda que as
pressas), utilizando uma ASA mais baixa do que costumo trabalhar (1600 em vez
de 3200) e também um pós processamento mais paciente. A versão 3.3.4 do DSS á
bem superior à anterior. Além de trabalhar com o RAW nativo da Canon (.CR2).
As
duas fotos de M 19 abaixo foram submetidas a exatamente o mesmo tratamento.
Foram empilhadas no Deep Sky Stacker, tiveram o gradiente de fundo reduzido no Fitswork,
foram convertidas de Tiff para Jpeg no Photoshop e visitaram o Noiseware . A única
diferença é que a da esquerda foi resultado das fotos capturadas em RAW
enquanto a da direita foi vítima do Jpeg.
Por algum motivo (que desconheço) até o enquadramento é diferente...
Raw Jpeg |
O
revival da Stonehenge dos Pobres foi um sucesso. Em um daqueles raros dias que
tudo funciona consegui a captura de dois DSO´s que podem ser considerados difíceis
sob um céu Bortle 7/8. Especialmente M 14 foi uma grata surpresa.
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