Costumo
utilizar o Stellarium (um misto de carta celeste com programa planetário) para
organizar minhas sessões observacionais. Suas versões mais atuais parecem ter
passado por uma maquiagem a fim de se apresentarem menos formais e mais
atraentes especialmente aos mais jovens e/ou aos iniciantes. Desta forma
diversos do DSO´s apresentados são
nomeados com apelidos clássicos , pomposos ou chamativos.
Ngc
4526 é um destes objetos . Enquanto
passeava pelo aglomerado de Galáxias de Virgem e buscava por novidades fora do
catalogo Messier me deparei com “ A Galáxia Perdida” (The Lost Galaxy). O título
não me era conhecido e tão pouco a galáxia. Não sabia de onde o Stellarium
tirou o belo e misterioso apelido.
Mistério
deve ser a palavra-chave por aqui. Venho assistindo uma “nova” série no
Netflix. Um belo e misterioso conto de terror. Penny Dreadful. Em uma mistura
de terror, mistério, poesia e cenários vitorianos que mostra a busca de Sir
Malcolm Murray (um explorador inglês e proprietário de um belo refrator que
decora seu escritório), Vanessa Ives (uma médium e uma beleza...) e Ethan
Chandler (um pistoleiro americano) por sua filha Mina sequestrada pelas forças
do mal. Isto deve ter me influenciado em ficar encantado com a possibilidade de
buscar por uma “Galáxia Perdida”.
Não
bastasse a sincronicidade destes eventos em um dos episódios Ives se encontra
com Frankenstein (ele também participa da série e tem claro parentesco com Ngc 4526)
e este cita a abertura de um de meus poemas favoritos de Blake (Auguries of Innocence) que possui claro caráter
astronômico (Blake embora muito esotérico é também um profundo entendedor dos mistérios
do universo...):
“To
see a World in a Grain of Sand / And a Heaven in a Wild Flower
Hold Infinity in the palm of your hand
/ And Eternity in an hour”
Não
faltassem coincidências sem nada a ver com as leis fundamentais do universo na
minha busca por Ngc 4526, “A Galáxia Perdida”, ela foi localizada por um erro
do Synscan (Uma espécie de computador de bordo de minha cabeça equatorial) de
Mlle. Herschel. Pedi para esta buscar por M 49 e Ngc 4625 apareceu centralizada
na ocular de 17 mm. E assim a “Galáxia
Perdida” foi achada. Mas é importante
lembrar que ela estava entre os objetivos da missão exploratória pretendida.
Embora
chamada de “A Galáxia Perdida” no Stellarium Ngc 4526 é extremamente brilhante
e fácil de ser localizada. E como ao buscar por informações sobre esta em meus
alfarrábios não encontrei ela listada com este belo e misterioso apelido no “Deep
Sky Companions: The Hidden Treasures “ de Steve O´Meara fiquei com a pulga atrás da orelha. Me
parecia muito pouco provável que O´Meara (que assim como eu adora “batizar”
DSO´s) deixasse isto passar. Na verdade, O´Meara aplica a mesma um outro
apelido. “ The Hairy Eyebrow Galaxy” (A Galáxia da Sobrancelha Cabeluda). Fui
em busca da verdade. Ou pelo menos de alguma lenda para justificar o título.
Existem
duas características que são associadas as lendas e que são antagônicas entre
si. A primeira nos diz que “ Por trás de
toda lenda há um fundo de verdade”. E a segunda fala “ que as lendas são
mentiras que ganharam a autoridade do tempo”.
E
como boa lenda a raiz da confusão sobre Ngc 4526 remonta há muito tempo. Nada
em escala astronômica mas a origem já seria velha quando nasci. E eu nasci no
século passado.
Tudo
indica que a “Galáxia Perdida” original não é Ngc 4526. O nome foi
primeiramente utilizado por Leland S. Copeland em um artigo escrito para a Sky
and Telescope de fevereiro de 1955. A matéria chamava-se “ Adventures in the
Virgo Cloud”. E a galáxia por ele assim chamada foi Ngc 4535. Esta encontra-se apenas meio grau ao norte de
4526. E é um alvo bem mais difícil. Especialmente visualmente.
Burnham
em seu “Handbook” confirma:
“...
Estas são as galáxias Ngc 4526 e 4535, a primeira uma elíptica bastante extensa
ou um sistema S0 com um centro brilhante, a outra uma grande espiral com baixo
brilho de superfície, medindo 6´X4´.A partir de sua enevoada e fantasmagórica
aparência em telescópios amadores esta foi batizada “The Lost Galaxy” por L.S.
Copeland”.
Seguindo
a investigação localizei a fonte original. A edição de fevereiro de 1955 da “Sky
and Telescope”. Ngc 4526 mereceu uma investigação “detetivesca”. Abaixo a foto original dos suspeitos. Baixei
todas as “Sky and Telescopes” para o ano de 1955. Sensacional...
Harvard Observatory - sky and telescope 1955. |
Para
não deixar pedra sobre pedra ainda localizei um post no fórum “Cloudy Nights”
onde um dos membros levanta a hipótese de Ngc 4526 ser chamada em mais de um
atlas digital (Stellarium e o “The Sky””) de “The Lost Galaxy” devido a habitar
entre duas estrelas de 7a magnitude que podem disfarçar sua presença
ou natureza. Isto explicaria sua presença no “Hidden Treasures” do O´Meara.
Este costuma apresentar objetos que mesmo não sendo impossíveis a telescópios amadores
podem esconder sua natureza devido a sua posição no espaço.
É
uma descoberta de William Herschel e foi primeiramente observada em 18 de abril
1784. Isto também é alvo de controvérsias. Ha fontes que falam em 13 de abril. Nada a respeito de 1 de abril...
“Brilhante,
bem grande, bastante alongada, muito mais brilhante no centro. Localizada entre
duas estrelas de 7a magnitude. (H I- 31= H I – 38) ”.
Podemos
perceber que Herschel a catalogou duas vezes. Entradas repetidas também podem
ter gerado alguma confusão a respeito de quem seria a “Galáxia Perdida”. A
mesma é membro da lista chamada de “ 400 de Herschel” que reúne as mais
interessantes e acessíveis entradas do enorme levantamento de nebulosas
realizado por William (com o auxílio luxuoso de sua irmã Caroline) Herschel.
Ngc
4526 é um alvo bastante brilhante e facilmente percebido mesmo com visão
direta. O fato de habitar entre duas estrelas de 7a magnitude ao contrário
de a tornar um “Tesouro Escondido” a faz fácil de localizar e mais fácil ainda
de se identificar entre o mar de galáxias que habitam a região.
James
Mullaney em seu guia fundamental para aqueles que decidirem encarar o desafio
de observar “Os 400 de Herschel” concorda com minha opinião:
“...Felizmente,
como indicado por Herschel em sua descrição, acontece desta habitar entre duas
estrelas de 7a magnitude no primeiro campo (estas estrelas habitam a
Via-Láctea), ajudando a distinguir de suas vizinhas”. “
Os
campos em Virgem são ricos em pequenas condensações e podem ser bastante
enganadores. M 49 (que era meu objetivo inicial) reside a menos de 1o
de Ngc 4526 e apesar de ser um dos “monstros” do aglomerado não brilha muito
mais que nossa galáxia.
Ao
observa-la rapidamente percebi sua aparência de estrela enevoada. Seu núcleo é realmente
muito brilhante. Galáxias lenticulares são amigas do amador. Costuma ter um
brilho de superfície alto e núcleo bastante evidente.
Como
já falei cheguei até Ngc 4526 por um descaminho de meu sistema de Goto.
Posteriormente a visitei com mais ‘”Fair play” e a percebi navegando a partir
de Rho Virginis com meu 15X70. Mesmo com o uso de binóculos (pela buscadora
8x50 isto não é tão obvio, mas seu núcleo se apresenta) ela revela sua natureza
nebulosa. As duas estrelas escudeiras ajudam bastante para saber onde se
concentrar com sua visão periférica. M
49 é também um belo marco para se localizar Ngc 4526. A galáxia é tão brilhante
que em um primeiro momento cheguei a considerar ter chegado a M 49.
Nossa
galáxia nem tão perdida realmente apresenta alguma semelhança com o monstro
incompreendido de Mary Shelley. Parece uma concha de retalhos em sua estrutura.
Atualmente
Ngc 4526 é classificada como uma galáxia lenticular mista (SAB 0). Isto implica
em tratar-se de uma galáxia elíptica aonde se suspeita de uma barra central,
com braços típicos de uma espiral clássica e um núcleo amorfo levemente
elipsoidal. Na foto do Hubble pode se
perceber todas estas estruturas. Ainda que umas mais que as outras. Uma área central de caráter lenticular com uma
espiral empoeirada ao seu redor. Esta
poeira empresta o apelido de “sobrancelha cabeluda” dada por O´Meara. Nada
disso é percebido visualmente mesmo com grandes telescópios amadores.
Ngc
4526 é sempre lembrada por duas supernovas recentes que em astro fotos por efêmeros
momentos a emolduraram entre suas duas estrelas escudeiras.
Ngc 4526 com a supernova 1994d. HST. |
Uma
delas em 1994 (1994d) foi um evento do tipo Ia e chegou a atingir 11.8a
magnitude.
Anteriormente
Ngc 4526 era considerada a uma distância semelhante a M 49 fazendo parte do sub
aglomerado sul de Virgo. Como supernovas são do Tipo Ia são uma das velas padrões
mais precisas conhecidas a nossa galáxia se aproximou de nós cerca de 15
milhões de anos luz de nós. A distância aceita para a região de M 49 no
aglomerado de Virgo é de 55 milhões de anos luz. Ngc 4526 atualmente habita a
modestos 40 milhões de anos luz. Aceito estes valores ela possui cerca de
68.000 anos luz de extensão.
Ngc
4526 é um alvo nobre e extremamente interessante. Fácil em se falando de galáxias.
Uma
galáxia nem tão perdida assim...
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