Sempre fui um defensor de que a
astronomia observacional é factível debaixo de céus urbanos. Mesmo em condições
extremas (Bortle 9). É verdade. Como a astronomia é uma ciência esta deve ser
comprovada de forma empírica. E sendo comprovada se estabelece uma verdade.
Já observei todo o Catalogo
Lacaille, boa parte do Messier e mais muitos DSO´s que pode ser enquadrados no
“Projeto Tudo que Existe” da janela de meu apartamento. Este está encravado na
zona sul do Rio de Janeiro. Uma cidade na casa de vários milhões de habitantes.
Muitos dos DSO´s que observei nestas
condições eram fantasmas de si mesmos. Zumbis. Mortos Vivos. Mas que
assombravam a matéria o suficiente para serem percebidos mesmo sem auxilio
mediúnico. Visão periférica, técnicas indianas milenares de respiração e muita
paciência são capazes de os tornarem perceptíveis para alguma parte do cérebro.
Parece ser o Lobo Occipital. Outra possibilidade seria todo o lado direito onde
parecem habitar a imaginação, a criatividade e a memória...
Chegaram as férias das crianças. E
apesar de duro me vejo responsável para desenvolver o lado direito. Ao menos do
menor. A mais velha já não quer mais saber de mim e a imaginação caminha por
locais que prefiro apenas manter na casa da cumplicidade. Já tive 15 anos e era
bem mais difícil do que a minha debutante.
Vamos, de novo, só os meninos subir
a serra. Ficam para trás a cara metade e a filha adolescente. Os planos são
claros. Ele será afastado da tecnologia e do Youtube e eu irei comemorar a
Aporema de Inverno. Para aqueles que não sabem esta é uma festa pagã que presta
homenagem aos céus e que se passa na lua nova mais próxima aos solstícios e
equinócios. Seu nome remonta ao cacique Aporema. Tudo indica que este possuía
uma visão privilegiada e que era capaz não só de ver 12 estrelas nas Plêiades
como de acertar uma flecha em uma lontra a mais de um lago de distância. O
tamanho do lago e da lontra são alvo de debate. As Plêiades são conhecidas como
as “Setes Irmãs”. Eu mesmo nunca consegui resolver mais que quatro sem usar o
lado direito do cérebro e de muita imaginação. E mesmo assim seis ...
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Canon T3 - Pentax 50 mm f 1.7 @ 2.8 - single frame 45 seg HEQ 5 |
A astronomia é uma ciência. Logo a
lógica deve ser respeitada. Meu carro é muito baixo, estou duro e as estradas
de terra de Lumiar são de terra. Embora
as ideias de Marx andem em baixa ele criou um conceito que me parece mais uma
lei fundamental que uma coincidência de Adams. Chama-se “mais-valia”. Eu,
capitalista, uso de meu carro para ganhar dinheiro com o trabalho de outro.
Coloco meu carro para trabalhar na mão de um membro do proletariado. Este deve
me pagar uma grana para poder utilizar o “bem de capital” (o carro) para mim.
Mais uma grana para o detentor de uma tecnologia (não sei se isso seria um “bem
de capital” clássico), a Uber. O valor que este me paga é quase o mesmo que eu
pago para alugar um carro de uma locadora de veículos (está mais capitalista
que eu). Posto que posso arregaçar o carro nas estradas de terra, pedir outro
carro em caso de pane e etc... faço excelente negócio. Não sei se “mais valia”
ou se “valia mesmo”. Aproveito aqui para
me vingar da “Budget” e da “Avis” e dizer que são um serviço de merda. Mas
justo que sou indico a “Movida”.
De volta as observações astronômicas,
mesmo que possíveis e assombradas de cidades grandes, um céu escuro é um raro
prazer. Especialmente para o astrônomo urbano. A região de Friburgo é um
excelente ponto para se observar. Mesmo sendo Friburgo uma cidade “grande” o
clima é bastante limpo e a altitude sempre é um “Plus”.
Durante anos o posto avançado do
Nuncius Australis foi Búzios. Uma península bem seca. Sua vegetação cheia de
cactáceas e uma falta de água famosa atestam suas qualidades. Mas a cidade
cresceu, o quintal onde observava passou por reformas e virou um bar e tirando
eu ninguém gosta de ficar no escuro. Foram instaladas mais de 9 lâmpadas em 40
metros quadrados. Bortle entre 7 e 8.
Me transferi para Lumiar. Uma área
rural muito mais escura. E onde, graças ao Lô Borges, olhar o céu e curtir a
natureza não é coisa de maluco.
Este post está virando quase um
merchandising. Já fiz propaganda de locadora de carro e agora vou indicar um
camping (com direito a casa para alugar). Cantinho Doce. Falar com a Renata que
ela manda apagar luz e tudo para você poder ver céu. Minha amiga... O céu é Bortle 3/4. Sempre chego depois do fim de semana. Afinal
ela tem um negócio para tocar.
Saí do Rio com meu pequeno na sexta
feira 13. Bons agouros até mesmo para um cético... Apesar de seguir por uma
rota diferente da que normalmente sigo, e indicada por um “especialista” na
região, demorei 4 horas para chegar na cidade. Normalmente levo três...
Já ia meio tarde para me encaminhar para
o Camping e sabia que a casa que queria estava alugada. Destino: Casa de Gil.
Um grande amigo e velho professor. Pai de 11 filhos e com dois destes que
regulam com o meu sempre é um bom refúgio.
Produz uma batida de “Clorofila” de formula secreta. Leva uma pinga de
19 anos, Ora-Pronobis, mel, limão e sabe-se lá o que. Cúrcuma com certeza.
Depois de nos aconchambrar na
pequena e agradável casa resolvo que vou observar. A casa fica lá no topo de um
vale bem fechado. Tanto o horizonte sul como o Norte são bem limitados.
Alinhamento polar sem usar o drift é impossível. Como minha religião e minha
paciência não permitem isto faço como um velho marinheiro e uso apenas o
Cruzeiro do Sul. Não funciona para o “Newton” (1200 mm). Mas sou bom nisto e
com uma Pentax 50 mm f 1.7 me divirto e faço belas fotos...
A que abre este post é um remake.
Engloba a fronteira entre Escorpião e Sagitário e apresenta diversos DSO´s. É
uma foto que sempre repito. Sagan, na série Cosmos, batiza um dos episódios de “A
Espinha Dorsal da Noite”. Trata da Via Láctea. Respeitando esta bela imagem
chamo a região de “A Décima Terceira Vértebra”. Abaixo e subindo em rumo a cervical
aproveito e registro a região próxima a Antares já na fronteira desta com
Ophiuchus. “A Décima Quarta Vértebra”.
A condensação é um inimigo terrível
para o observador. Já sabendo disto e sem ter montado os “dew heathers” que
sempre me prometo passo muito tempo com um pequeno secador de cabelo nas mãos.
Funciona. Mas é um exercício de disciplina. A cada 10 fotos um minuto de
cabeleireiro.
Algo que me emociona é pessoas que
apesar de não serem observadores e que depois de alguns ‘showpieces” cansarem
da novidade dão valor ao seu trabalho. A esposa de meu velho mestre (que em vez
de observar fica, no frio, ao meu lado dando todo suporte necessário e
transcorrendo sobre a “domesticação” da capoeira feita por Bimba) vem sempre
trazer algo para comer ou um chá. E pergunta, com real interesse, sobre as
condições do céu (adorou o conceito de “seeing”). Aliás se tornou uma adoradora
de estrelas duplas depois de ir até Albireo).
Vencido pelo frio, a infusão e a
viagem vou dormir.
Vem o sábado. Outro merchandising:
Existe um açougue (daqueles de verdade) onde o dono faz suas linguiças, usa uma
luva de malha de metal e te diz qual a carne que você vai levar para o
churrasco porque hoje é esta que está boa para caramba que fica próxima ao Poço
Feio. Chama-se Parada Obrigatória. Neste sábado a peça é uma costela de porco
fresca (carne congelada lá é coisa para otário ou restaurante. Estes porque vão
ter que congelar de qualquer forma e vão levar 50 kg.). O preço chega a ser
revoltantemente barato para um carioca. Para os "locais" é caro. Mas admitem que
é muito melhor que no Açougue Central. Ainda nos “comes e bebes” a cerveja Império,
que não é feita de milho, arroz ou genéricos, cabe no bolso e não precisa
devolver o casco. Estes tem sidos reciclados e estão usando muito para construção...
Com toda esta farra me lembro que os
maiores inimigos da observação são o próprio observador, seus amigos e a
cachaça. Nesta noite a brincadeira é a olho nu. É impressionante a quantidade
de constelações que consigo identificar. A casa do mestre é em Boa Esperança.
Bortle 3. Você já viu Aquário?
Peixes? E ainda por cima embriagado...
De volta ao primeiro parágrafo deste texto – Sim, é possível observar no Rio.
Mas é muito melhor em céus escuros. A navegação, até você se acostumar, é até
mais difícil. Mas depois que acostuma... O catalogo Lacaille (que é um velho
conhecido) é quase todo perceptível a olho nu. Duas noites mais tarde vou
realizar o sonho de perceber (que é diferente de ver...) M 83 sem auxílio ótico.
A foto abaixo é fruto de 10 exposições de 30 segundos. Reza a lenda que é o objeto mais distante
visível a olho nu para o habitante do hemisfério sul. M 69 que é membro do
catalogo eu não percebi nem com reza braba. Há registros de observações a olho
nu de M 81 e 82 no hemisfério norte.
Eu tinha feito uma promessa antes de
partir para viagem. Eu iria observar. Astrofotografia é um vicio terrível. É
adorável, prazeroso e mostra coisa que você não vê sem demandar muito esforço.
Mas a astronomia é um exercício visual. Todo o Catalogo Ngc foi “descoberto”
com a visão. E como dizia o profeta “O homem é o exercício que faz.” A astrofotografia é uma arte difícil. Uma
técnica fundamental e poderosa ferramenta. Mas é importante lembrar que não
pode ser um fim em si mesma. Fotografar sim, mas ver o céu é a maior é
diversão.
Domingo é a final da Copa que é
seguida de um churrasco na casa de um novo amigo. Este é o responsável pela
horta do melhor hotel da região. Conheci o filho do dono que me prometeu
liberar o Heliponto do estabelecimento para fotografar. Possui quase 360o
de horizonte e se vê o mar. Aguardo oportunidade.
Amanhece segunda feira e é momento
de me deslocar para o camping. Um horizonte mais livre e, seguindo o cronograma,
noite de observação a sério. Eu queria ser fiel ao projeto. Observar e fazer
breves registros fotográficos. Investir no “Projeto Tudo que Existe”. Neste
quero as vezes observar todo o Catalogo Ngc as vezes observar apenas suas
entradas mais obscuras. Lá quis acreditar que seria factível observar a porra
toda. E fotografar estes de forma descompromissada. Não possuo muito tempo para
observar e astrofotografia a sério implica em captura poucos (as vezes 1 ou 2...)
objetos por sessão. Não vai rolar.
A galera... |
Vou eu, meu pequeno, Tonho (o
pequeno do Gil) e João (o mais velho do professor). O ultimo contratado para
cuidar dos menores enquanto eu observo. Funciona de forma espetacular. Durante
o dia brinco com as crianças, meu filho pesca seu primeiro peixe, usam arco e
flecha e são crianças que riem de um jeito que só criança ri. De noite eu
observo e graças ao frio estes preferem se refugiar na pequena casa enquanto
jogam no computador, fazem guerra de travesseiros, veem filmes e riem como só
crianças riem. O céu é espetacular, o alinhamento polar é bem mais fácil com um
horizonte mais limpo e eu sou feliz como há muito tempo não era. São tempos
difíceis...
Pulei uma parte da história. Na
primeira noite, geralmente estabanada, não conseguia ver quase nada. Atribui ao
alinhamento polar pobre ao telescópio que sabia descolimado e uma buscadora mal
alinhada. Na manhã seguinte (antes de ir para açougue) fui colimar o Newton e
percebi que o primário não estava sujo. Estava imundo. Nunca acredite que você não
deve limpar seu espelho. Besteira. Aproveitando da oficina abri o Newton todo e
com uma solução de sabão bem fraca limpei o bichinho. Só de olhar para ele vi
que tinha ganho de 2 a 3 magnitudes.
Um objetivo pré-estabelecido era a
Bug nébula. Como geralmente acontece por aqui este não compareceu. Na verdade,
alguns objetivos planejados no entorno da cauda do Escorpião me foram recusados
pelo Synscan. Embora este tenha funcionado brilhantemente em outras regiões do
céu. Mas se recusou a localizar a Nebulosa do Inseto (NGC 6308) e da “A Pegada
do Gato” (Ngc 6334).
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M 53 |
Me conformo e sigo em frente. M 53
era o penúltimo globular Messier que me faltava observar e fotografar. Não é
mais. Fica faltando apenas M 72.
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M 27 |
Como o Synscan está funcionando bem o
norte do equador celeste sigo rumo a Nebulosa do Haltere, M 27. Céus escuros
lhe fizeram muito bem. Cheguei a conclusão que nunca a tinha a observado de
fato. Extremamente brilhante com visão direta. Nada de visão periférica e
técnicas de Yoga...
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A Asa da Mariposa- Ngc 6281 |
Retorno a luta com o “Inseto”. Perco
de novo, mas, no caminho esbarro com uma Mariposa. “The Moth Wing Cluster” (A
Asa da Mariposa) se apresenta meio ao acaso durante a busca e após breve namoro
me permite fazer umas “nudes”.
Depois disto resolvo testar a
escuridão em algumas galáxias. Cen A e M 83 nunca foram tão gentis. Com
paciência e persistência consigo perceber muita estrutura em M83. O Cata-vento
se apresenta com 70 X e melhor ainda com 120 X.
Depois disto volto para o Horizonte
norte. Fico todo feliz quando peço a Mlle. Herschel (minha cabeça equatorial
HEQ 5) para localizar algo e quando chego na ocular o DSO está lá bem no centro.
M 57. A nebulosa do Anel e a segunda planetária da noite. Faço algumas poucas
fotos desta. Mas na noite seguinte as crianças conseguem deletar esta enquanto
brincam no computador enquanto observo. Com 70 X o Anel é lindo e evidente.
Caço também a Nebulosa Saturno, mas
já cansado e querendo ver as crianças desmonto o circo e vou me reunir com elas.
No dia seguinte começo cedo e quero visitar
algumas novidades. A noite começa em alto estilo podendo ver a lua em conjunção
com Mercúrio, Vênus. Júpiter e Saturno já bem alto no céu. E logo mais tarde
Marte nascendo super brilhante por trás da Pedra Riscada e batendo Júpiter em
mais de meia (0,5) magnitude. É uma “Noite de Gilgamesh”. Nestas se pode
observar todos os planetas conhecidos desde a antiguidade.
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Perdido na cauda de Escorpião caçando pela "Pegada do Gato"... |
Nesta noite comecei de novo tentando
capturar Ngc 6334 com minha lente 300 mm. E novamente o Synscan se recusa a colaborar
na região. Mas não quero ficar a noite toda tentando possibilidades de estrelas
para alinhamento. Já tinha feito o alinhamento utilizando a rotina de “Three
Stars Align” e depois que esta não cravou a “Pegada do Gato” voltei ao mais prático
“ Two Stars Align” e com uma combinação que sei funciona bem na maioria das
vezes (Acrux e Beta Cen) apesar de não se considerada ideal prelo manual do
Synscan parto em busca das novidades.
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M 26 |
M 26 é um discreto aberto que simula
bem um cometa falsificado e que nunca tinha visitado.
Depois chego até um globular pouco
frequentado e muito interessante. Mesmo com o céu escuro este é um daqueles DSO´s
que se apresentam. Mas não são dados. Bem grande e tênue é conhecido como “O
Globular Fantasma”. Trata-se de Ngc 5897
em Libra.
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Ngc 5986 |
Sigo a viagem ruma a outro globular.
Ngc 5986. Localizado em Lupus. Pequeno, mas bem brilhante.
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C 81 |
Mais um globular. Agora membro do
Catalogo Caldwell (C81 ou Ngc 6352). Mais um Globular pouco denso em direção ao
centro. Estamos em noite temática... Bem mais fácil que o “Fantasma”.
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IC 4756- O Aberto é muito maior que a area coberta pelo sensor. |
Escolhendo um aberto ao acaso tenho
grata surpresa. Um aberto enorme e feito sob medida para minha ocular de 40 mm.
IC 4756. Possuidor de vários apelidos: O Aglomerado de Graff, O Jardim Secreto
e o Aglomerado Tweedledee. Enorme é um daqueles que para ser todo observado é
preciso passear com aumentos maiores. Sensacional.
Depois visito Vega e faço uma foto
desta. É uma estrela cheia de lendas e quero fazer um post a respeito.
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M 11 |
Um rápido pulo a M 11. Um aberto belíssimo e que visitei poucas vezes. Não fosse o colorido evidente seria quase impossívem diferenciar dos frouxos globulares que observei... O foco ficou bastante a desejar...
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M 6 |
Visito dois velhos amigos que nunca canso de visitar. M 6 , o Aglomerado da Borboleta e M 7, O Aglomerado de Ptolomeu. Neste céus escuros é possível resolver estrelas em ambos a olho nu. Ou quase... Preciso usar meus óculos.
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M 7 |
Depois dou uma namorada em Marte. A
calota polar é a única estrutura que realmente percebo. Acho que a tempestade
de poeira ainda está cortando o barato dos amigos “planetários” nesta oposição.
‘
É tempo de desmontar tudo. Na manhã
seguinte o plano é partir cedo de volta ao lar. Por mim ficaria até o fim da
semana. Mas os custos da operação se impõem e tenho que retornar. Inicio a
jornada de volta pela bela estrada Praia-Mar, sigo pela BR-101e chego de volta
ao Rio vendo o “Gigante Deitado a partir da Ponte Rio-Niterói. Agora é processar um monte de fotos e esperar
pela Primavera.
Parabens,belo texto prende a atençao.
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